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As Fases do Desenvolvimento dos Filhotes
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Américo Cardoso dos Santos Júnior
O CAFIB – Clube de Aprimoramento do Fila Brasileiro sempre recomendou (e continua a recomendar) que os filhotes permaneçam junto da mãe e de seus irmãos de ninhada até a idade de 60 dias. É que as brincadeiras entre eles e a consequente socialização, aliadas às lições que a cadela ensina e o exemplo de guarda que ela proporciona, trazem inegáveis benefícios ao seu desenvolvimento físico e psíquico. Na verdade, embora muitos criadores liberem os cachorrinhos a seus futuros proprietários quando eles estão chegando aos 45 dias – para se livrarem da trabalheira e da despesa e, principalmente, para receber o dinheiro da venda –, cientificamente, eles não devem ser apartados da mãe e dos irmãos até completarem a idade exata de 49 dias.
A descoberta dos períodos críticos durante o desenvolvimento dos filhotes revolucionou os conhecimentos sobre o adestramento de cães.
Os estudos que levaram a essa conclusão foram alavancados em 1945, nos Estados Unidos, logo após a Segunda Guerra Mundial. Naquela época, o tradicional Roscoe B. Jackson Memorial Laboratory, em Bar Harbour, no Maine, dirigido pelo renomado cientista John Paul Scott (1909 – 2000), recebeu da Rockfeller Foundation uma doação considerável para financiar pesquisas sobre a genética canina, com objetivo de lançar luz sobre a genética humana e o comportamento infantil. Scott, além de PhD em Psicologia, era um geneticista que conduzia pesquisas sobre os aspectos congênitos e hereditários do comportamento humano (especialmente a agressividade) e, juntamente com seu principal colaborador, o biólogo e professor de psicologia John Langworth Fuller (1910 – 1992), fazia muitas comparações com o comportamento canino. Nesses estudos, foram utilizados cães de cinco raças bastante diferentes em temperamento e aptidões funcionais, tendo em comum apenas o porte pequeno, para poderem ser mantidos com mais facilidade nas instalações do centro de pesquisa: o Basenji, o Beagle, o Cocker Spaniel, o Fox Terrier de Pelo Duro e o Pastor de Shetland. Além da criação dessas cinco raças puras, os cientistas também conduziam pesquisas sobre os produtos resultantes de seus cruzamentos; e esses cruzados recebiam denominações como “Hybasco” (Hybrid Basenji-Cocker Spaniel) ou “Cobasco” (Hybrid Cobasco-Cocker Spaniel, ou seja, ¾ Cocker e ¼ Basenji, daí o nome “Co-bas-co”, de Cocker-Basenji-Cocker).
BASENJI – Este cão primitivo, conhecido desde o antigo Egito, é uma das poucas raças originárias da África e tem características incomuns. Nas fêmeas, o cio se manifesta uma vez por ano, como nos canídeos silvestres, e não duas, como nos cães domésticos. Eles costumam se higienizar lambendo partes do corpo, como fazem os gatos. E, por não serem capazes de latir, emitem uma espécie de uivo, ou grunhido.
BEAGLE – É uma raça inglesa de cães de caça que, embora dóceis, são teimosos, desobedientes e difíceis de adestrar. É a mais usada em pesquisas de laboratórios, o que tem desencadeado protestos veementes por parte dos defensores dos animais, inclusive aqui no Brasil, onde mais de 100 exemplares eram mantidos no Instituto Royal, em São Roque (SP), invadido por ativistas. Nos Estados Unidos há cerca de 70 mil Beagles em uso nos testes laboratoriais e, no Reino Unido, eles constituem 97% do plantel destinado a essa finalidade. No século XVIII, os ingleses conduziram um trabalho de seleção e cruzamentos para obter o chamado “beagle de bolso” (hoje extinto), muito apreciado pela rainha Elizabeth I. O Beagle mais popular é o Snoopy, dos quadrinhos.
COCKER SPANIEL – Da mesma forma que o Snoopy popularizou o Beagle, o Cocker Spaniel tem na cadela Lady (companheira do vira-lata Vagabundo), seu mais famoso representante nos livros e filmes infantis. Alguns exemplares desta raça costumam manifestar o transtorno comportamental congênito chamado de “síndrome da fúria” (em inglês “Cocker madness” ou rage syndrome), um caráter dominante que desencadeia ações agressivas descontroladas e sem motivo específico.
FOX TERRIER DE PELO DURO – Também chamada no Brasil de “pelo de arame” (tradução literal do inglês “Wire-haired Fox Terrier), esta raça britânica, de cães muito enérgicos, atléticos e corajosos, tinha como função original desentocar as raposas e outras presas. Esta é a origem do nome “Terrier”, que deriva da palavra latina “terra”, para designar as raças que entram em buracos ao perseguir a caça. Nos quadrinhos, o mais conhecido é cão Milu, do repórter Tintin, criado pelo belga Hergé, em 1929.
PASTOR DE SHETLAND – Tem a aparência muito semelhante à de um Collie, mas em tamanho bem menor. Nessas geladas Ilhas Shetland, que já fizeram parte da Noruega e hoje pertencem à Escócia, existem outras miniaturas de animais, como pequenos bovinos e ovinos, além de um dos menores equinos conhecidos, o Pônei de Shetland. Como estranhíssima curiosidade, na Internet existe um vídeo mostrando uma mulher muçulmana cega, em Chicago, nos Estados Unidos, que impossibilitada de ter um cão-guia por motivos religiosos, é conduzida por um desses pôneis, pelas ruas e até dentro do ônibus.
Como informação curiosa, o famoso zoólogo sueco, especializado em etologia, dr. Erik Zimen (1941 – 2003) dedicou-se intensamente a pesquisas sobre o comportamento dos lobos e, também, dos chamados “Puwos”, que eram os produtos resultantes da hibridação entre cães da raça Poodle (Pudel em alemão) e lobos (wolf em alemão).
Finalmente, em 1948, o dr. Scott divulgou, como resultado de suas pesquisas, os períodos críticos na vida dos filhotes. Juntos, os dois pesquisadores publicaram, nos anos 1960, uma obra hoje considerada clássica, “Genetics and the Social Behaviour of the Dog”. E, em reconhecimento ao notável trabalho da dupla, a Behaviour Genetics Association passou a entregar, anualmente, o prestigiado Prêmio Fuller-Scott aos cientistas de destaque nessa área.
Baseado principalmente nesses estudos, o pesquisador e adestrador de cães Clarence Pfaffenberger (1889 – 1967), também nos anos 1960, publicou o igualmente clássico “The New Knowledge of Dog Behaviour”, um extraordinário guia prático para criadores e treinadores, especialmente na área de guias de cegos. Os cachorros são utilizados para essa nobre função desde tempos muito antigos, mas sua história recente começa em 1916, quando o médico alemão dr. Gerhard Stalling, que há anos vinha conduzindo pesquisas sobre várias formas de treinamento canino, fundou, em Oldenburg, a primeira escola do mundo voltada para a formação de cães guias de cegos. Logo surgiram filiais em diversas cidades alemãs e, depois, em outros países. Em 1927, a norte-americana Dorothy Harrison Eutis (1886 – 1946), que treinava cachorros para o exército, polícia e alfândega na Suíça, depois de ter passado vários meses na famosa escola de adestramento de Potsdam – histórica cidade medieval próxima a Berlim, que desde o século XIX é reconhecida como importante centro científico, com mais de 30 instituições de pesquisa –, relatou a experiência que tanto a impressionara no Saturday Evening Post. O título desse artigo era “The Seeing Eye”, ou “O Olho que vê”, nome também utilizado para batizar seu primeiro centro de treinamento na Suíça, “L’Oeil qui Voit”. Nos Estados Unidos, em 1929, ela fundou a instituição “Seeing Eye”, hoje a maior e mais importante do mundo em cães guias de cegos, além de liderar as pesquisas em controle de doenças, melhoramento genético e comportamento animal.
O Labrador Retriever é uma das raças mais utilizadas para guiar cegos. É originário da ilha de Terra Nova, no Canadá, em cuja perigosa costa naufragaram numerosos navios, como o extremamente luxuoso e supostamente “inafundável” transatlântico Titanic, em 1912.
Nestes tempos hipocritamente corretos, é preciso abrir parênteses para justificar o uso da palavra cego, hoje tida como quase ofensiva no Brasil. Na verdade, “deficiente visual” é quem tem limitações para enxergar, ou enxerga mal; e “cego” é quem não enxerga. Sinto-me bem à vontade quanto ao uso dessa palavra porque, quando criança, frequentei intensamente a casa de um amigo, cuja mãe era a extraordinária Dorina Nowill (1919 – 2010), de renome internacional, e que tinha ficado cega aos 17 anos. Quem não soubesse, ao observar a descontração de sua movimentação e a segurança no desempenho de suas variadas atividades pelos numerosos aposentos da ampla residência, jamais suspeitaria que ela não enxergava. Em 1946, com apoio do Governo e de instituições internacionais, ela havia criado a “Fundação do Livro do Cego no Brasil”, cujos principais objetivos eram a publicação e a distribuição de obras editadas pelo sistema Braille. Em 1991, o nome dessa instituição foi alterado para Fundação Dorina Nowill para Cegos. Esta, e outras dezenas de entidades de habilitação e reabilitação de pessoas que não enxergam, ou têm a visão muito baixa, estão congregadas na Organização Nacional de Cegos do Brasil, por sua vez, filiada à ULAC – União Latino-Americana de Cegos e, também, à UMC – União Mundial de Cegos (e não de deficientes visuais). E aqui fecho estes parênteses.
Há que se lembrar que as pesquisas voltadas à seleção e ao adestramento de cães para essa difícil atividade tiveram notável avanço naquela época em que muitos jovens combatentes da Segunda Guerra Mundial voltavam para casa mentalmente traumatizados e fisicamente mutilados, paralíticos ou cegos. Pfaffenberger, durante muitos anos, dedicou-se intensamente a esse trabalho, iniciado na notável instituição Guide Dogs for Blind Inc., em San Rafael, na Califórnia. Suas pesquisas se fundamentavam no fato de que, embora muitos animais domésticos possam ser treinados para prestar serviços às pessoas, executando ações que auxiliem seus donos ou condutores nos mais diversos campos de atividade, o cão é único a manifestar verdadeira alegria e a se sentir euforicamente recompensado pelo simples fato de conseguir agradar o homem.
Isso me faz recordar que, no início daqueles anos 1960, quando eu era criança, passava as férias escolares em fazendas de parentes, situadas na região Noroeste Paulista, na época ainda rodeadas por vastas extensões de florestas virgens, o que nos permitia, durante os passeios a cavalo, ver rastros de onças nos carreadores do cafezal. Naquele tempo, um de meus tios tinha o costume de caçar codornas e perdizes para enriquecer as refeições servidas naquela grande mesa repleta de primos vorazes das mais diversas idades. Eu gostava muito de acompanhá-lo nessas excursões cinegéticas, principalmente para admirar a habilidade e o entusiasmo do velho Pointer Inglês (então, lá denominado genericamente Perdigueiro) que localizava e levantava as aves. Já naquela época eu, ainda menino, ficava a cogitar que o cachorro, na verdade, não se entusiasmava pela caça propriamente dita, porque, se assim fosse, ele não ficaria pachorrentamente deitado ao sol na varanda e iria, sozinho, procurar a pista das aves. Na verdade, seu comportamento entusiasmado, e até eufórico, só se manifestava quando ele via meu tio calçado com suas botas de cano alto, o chapéu na cabeça, o cinturão com os cartuchos na cintura e a espingarda nas mãos. Seu verdadeiro prazer era servir e agradar o dono.
Pfaffenberger, no relato de suas experiências, explica que, segundo a surpreendente constatação do dr. Scott, até a idade de três semanas, os filhotes não são afetados por quaisquer influências ambientais nem são capazes de algum aprendizado. Relata que só a partir desta segunda fase, quando seus órgãos do sentido (visão, audição e olfato) se tornam funcionais, é que eles começam a aprender e que, dos 21 aos 28 dias de nascidos – período em que é importantíssima a permanência da ninhada junto com a mãe –, subitamente, suas capacidades mentais e emocionais passam a se desenvolver de forma muito aguda e rápida. Testes com aparelhos de eletroencefalografia revelam que o cão nasce com o cérebro muito imaturo e que, no 21º dia, ocorre uma profunda modificação no registro das ondas cerebrais, quando os estados de sono e de vigília passam a ser diferenciados. Segundo Pfaffenberger, é nesta data que ele começa a perceber o mundo a seu redor e a viver como indivíduo. Nesta segunda fase, entre o período dos 21 aos 49 dias de vida, ou seja, entre a terceira e a sétima semana, o desenvolvimento do seu cérebro atingirá a capacidade de um cão adulto (embora, obviamente, sem a sua experiência) e suas faculdades de aprendizado se tornam muito altas. É uma etapa em que os filhotes brincam e lutam muito (em algumas raças, até com ferocidade) e começam a ser estabelecidas as hierarquias e a dominância entre eles. É, também, a fase mais propícia para o início do ensinamento das primeiras lições porque, se eles não aprenderem com o dono, irão aprender por conta própria e poderão adquirir hábitos indesejáveis. Ele considera que o 49º dia é o momento ideal para o cãozinho ser desmamado e levado para o novo lar pelo novo dono.
Os filhotes precisam permanecer junto da mãe.
Entre a sétima e a décima segunda semana de vida, ou seja, no período entre o 49º e o 84º dia após o nascimento, ocorre o terceiro período crítico na vida do filhote. Nesta etapa, em que sua capacidade de aprender continua a aumentar, ele necessita de muita atenção individual e é a melhor fase para estreitar os vínculos com o dono. Os estudos constataram ainda que os aprendizados e experiências do filhote entre a sétima e a décima sexta semanas de vida irão moldar o caráter do cachorro adulto. É um período em que, caso os cãezinhos não sejam ensinados pelos donos, eles continuarão a encontrar alguma maneira de aprender por sua própria iniciativa. E Pfaffenberger considera que esta é uma das maiores descobertas que revolucionaram a criação e o treinamento de cães guias de cegos. O quarto período crítico, que decorre entre a décima segunda e a décima sexta semanas (84 a 112 dias), é aquele em que o filhote declara sua independência da mãe e pode começar a ser treinado mais seriamente. Esta fase é, ainda, aquela em que se definem as relações hierárquicas entre o cão e seu dono. Ele também ressalta que, embora seja muito importante o processo de socialização com os irmãos da ninhada, é igualmente fundamental a socialização com o seu proprietário, que levará ao desenvolvimento do cãozinho como indivíduo, além de fortalecer sua autoconfiança. Para isso, Pfaffenberger recomenda que o filhote seja, periodicamente, separado dos irmãos e de quaisquer outros cães, para ter, sozinho com o dono, agradáveis sessões de brincadeiras e das primeiras lições de adestramento. Outra curiosidade revelada por esses experimentos é que o exemplar que cresce até a fase adulta junto da mãe, por não ter sido apartado dela quando filhote, jamais alcançará bons resultados como cão-guia.
Sobre a importância da idade em que as lições devem ser iniciadas, ele reescreve o velho adágio que afirma não ser possível ensinar truques novos a cães velhos, dizendo que, na verdade, um cão velho, a quem nunca tenha sido ensinado algo, não conseguirá começar seu aprendizado na velhice. E que aquele a quem os ensinamentos foram iniciados na idade certa poderá sempre continuar a assimilar novas lições.
Há que se notar que, embora tenhamos a tendência de estipular intervalos de tempo em números redondos múltiplos de 10, ou de 5 (o filhote deve ficar com a mãe e os irmãos até 45 ou 60 dias), a Mãe Natureza, ou as leis que regem o funcionamento do universo, preferem os períodos semanais, portanto múltiplos de 7. Muitos povos antigos, além de terem constatado a influência das fases da lua no movimento das marés, na poda das plantas, no plantio e na colheita das lavouras, também adotavam como referência da passagem do tempo os ciclos lunares, que eram ainda associados aos ciclos menstruais das mulheres, ambos com duração de 28 dias, ou quatro semanas. E esses experimentos dos cientistas com os cães eram minuciosos a ponto de constatar que os filhotes nascidos no 63º dia de gestação (nove semanas) desenvolviam a funcionalidade dos seus sentidos de visão, audição e olfato um pouco mais cedo do que aqueles provenientes de uma prenhez um ou dois dias mais curta.
Em seu livro, Pfaffenberger descreve, pormenorizadamente, o processo de evolução dos testes aplicados aos filhotes para selecionar os aptos a desempenhar a difícil função de guiar cegos e comenta o alto índice de fracassos registrado durante o início das pesquisas. Não se pode deixar de considerar que, além de aprender a obedecer determinadas vozes de comando, o cão-guia, na sua rotina, com certeza, terá de enfrentar muitas situações práticas imprevistas para as quais não tenha sido especificamente treinado e que exigem dele uma tomada de decisão. Ao longo de seu itinerário de costume, podem surgir os mais variados e inesperados obstáculos a serem contornados. A placa de perigo, avisando que a tampa do bueiro está aberta para reparos na tubulação, não pode ser lida pelo cão nem por seu condutor; o pesado galho da árvore que quebrou e ficou apoiado no muro tem altura suficiente para que o guia passe por baixo, mas não seu dono. Uma das fotografias que ilustram o livro mostra o entregador de jornais Alvin Kinser com seu Labrador chamado Timmy. E a legenda da foto explica que o cão é quem conhece o itinerário a ser seguido e, quando surge algum obstáculo imprevisto no caminho, também é ele quem decide se deve conduzir o dono através, ao redor, ou por cima do empecilho. Diz, ainda, que, embora, eventualmente, o guia precise alterar a rota, nunca uma das 160 entregas diárias de jornais deixou de ser feita. E, para completar, conta que, no dia de receber o pagamento, o cão leva o jornaleiro, sem hesitações, aos lares dos assinantes mensais, ignorando as residências dos assinantes anuais. Esse exemplo comprova a afirmação de Pfaffenberger que só podem se tornar guias de cegos os cães capazes de tomar iniciativas e assumir responsabilidades (atributos que, normalmente, acredita-se serem negados aos animais), pois, caso contrário, eles poderão colocar em sério risco a integridade física de seu condutor ou até levá-lo à morte.
A raça escocesa Golden Retriever é a mais popular no Japão. Originalmente criada para a caça de aves aquáticas, hoje, além de utilizada como guia de cegos, por se ótimo farejador, também tem sido empregada como cão de resgate, busca e salvamento.
O índice de aprovações nesses testes aplicados aos filhotes subiu intensamente depois que Pfaffenberger passou a seguir as orientações do famoso geneticista dr. Clarence Cook Little, fundador e diretor do já citado Jackson Laboratory, onde, por longos anos, ele conduziu um programa de criação em que milhares de camundongos se reproduziam em consanguinidade fechada, sempre em acasalamentos de irmão com irmã, pai com filha e mãe com filho, por mais de 250 gerações, o que os tornava de grande valor nos experimentos genéticos. Esse plantel, com tal homozigose, permitiu a padronização das pesquisas sobres as origens, as causas e os tratamentos de muitas doenças não contagiosas, como câncer, diabetes e outras, em laboratórios clínicos de diversos locais do mundo. Em virtude de toda essa imensa população de camundongos ter se tornado tão semelhante entre si como gêmeos idênticos, era como se, nos mais variados países, aqueles milhares de experimentos, conduzidos pelos mais diferentes cientistas, estivessem todos sendo feitos com o mesmo animal.
O marco inicial do processo de seleção de cães-guias a partir de acasalamentos consanguíneos foi o Pastor Alemão Franck of Ledge Acres, trazido pelo grande adestrador William F. Johns, que se tornou Diretor Executivo da instituição. O programa orientado pelo dr. Little incluía o cadastro de mais de 1.500 cães pelo então moderníssimo suporte das fichas perfuradas IBM (International Business Machines Corporation).
O extraordinário sucesso dos critérios adotados nos estudos das genealogias, nas programações dos acasalamentos e na seleção das crias é atestado pela constatação de Pfaffenberger que, no início desse trabalho, quando apenas um dos filhotes da ninhada alcançava êxito como cão guia, tal resultado era comemorado como uma grande vitória; e, anos depois, caso só um deles não servisse, essa falha era considerada uma triste decepção.
É interessante registrar algumas curiosidades sobre este tema. No início do treinamento, os instrutores ensinam, minuciosamente, ao cego, as características de cada item do equipamento que o cão irá usar e a maneira de manejá-lo. São abordados os diferentes tipos de coleira, as maneiras de colocá-las e de trocá-las, assim como as diversas guias, de comprimentos variáveis, para usos específicos, e os arreios que o cego segura. Também são explicadas as vozes de comando e as reações do cão ao escutá-las. Nessa fase do processo, durante alguns dias, o instrutor se posiciona na outra ponta desse equipamento, no lugar do cão, e executa os comandos dados pelo aluno, subindo e descendo escadas, contornando obstáculos, virando esquinas e atravessando ruas por onde transitam veículos.
Aqui no Brasil, a utilização de cães-guias ainda é insignificante. Os índices não são uniformes, mas, segundo dados de 2010 do IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, existem em nosso país cerca de sete milhões de pessoas cegas ou com diferentes níveis de deficiência visual grave e permanente, enquanto o número de cães-guias em atividade não chega a 200. As instituições idôneas aplicam um processo de avaliação das necessidades e características do interessado que, em seguida, ingressará na lista de espera para receber um animal adequado ao seu perfil. É importante frisar que ele não precisará pagar nada por isso. Merecem destaque um projeto do Governo Federal, conduzido no Campus Camboriú pelo Instituto Federal Catarinense, assim como as ações de outras entidades sérias e competentes, como a Escola Helen Keller, o Corpo de Bombeiros de Brasília, o Instituto Magnus, o Campus Urutaí do Instituto Federal Goiano e o Campus de Alegre do Instituto Federal do Espírito Santo. Também é importante ressaltar que a legislação brasileira garante, ao cego, ao treinador e à família socializadora, o direito de entrar e permanecer com o cão em praticamente todos os ambientes públicos e privados, como shoppings, restaurantes, teatros, hospitais e transportes públicos incluindo aviões. A lei exige que o animal esteja portando a coleira com identificação e o arreio para guiar; e que o condutor traga sempre a carteirinha com fotos e dados de identificação da pessoa e do cão. Só é vedado o ingresso a locais de manipulação de alimentos (como cozinhas) e a ambientes esterilizados (como UTIs).
E, por falar em coleiras e correias, encerro este texto com mais algumas informações curiosas. A Igreja Católica considera Santa Luzia de Siracusa (280 – 304) a protetora dos olhos e da visão. Na época da chamada Santa (embora, na verdade, fosse diabólica) Inquisição, ela foi perseguida, presa e torturada, tendo seus olhos arrancados pelo carrasco antes de ser morta. Essa lembrança me ocorre porque seu contemporâneo, San Blas de Sebaste (264 – 316) – no Brasil, chamado de São Brás –, depois de martirizado e decapitado, passou a ser considerado o protetor das doenças da garganta, tanto das pessoas como dos animais. Por isso, o antigo Mastim Espanhol – que não era um pastor, mas um grande molossóide utilizado como guardião dos rebanhos para proteger as ovelhas dos ataques de lobos e ursos – trazia, no pescoço, uma coleira de metal rodeada por hastes pontiagudas, chamada “carlanca”.
As carlancas, feitas de metal ou de couro, já eram utilizadas nos tempos da Grécia Antiga e seu uso ainda continua em certas regiões da Espanha, Itália e Turquia.
Esse tipo de aparato remonta aos tempos da Grécia Antiga e é chamado de “wolf collar” na Inglaterra e de “roccale” ou “vreccale” na Itália. No passado, essas coleiras eram fabricadas artesanalmente sempre em datas de festas religiosas de grande importância, consideradas propícias para a produção de amuletos de sorte, especialmente no dia de Corpus Christi. Com o objetivo de reforçar a proteção ao pescoço dos cães contra as mordidas dos grandes predadores, elas também costumavam ser banhadas em água benta e recebiam correias que houvessem estado em contato com alguma imagem de San Blas. Esse bispo, médico e mártir, por ser cristão, tinha sido vítima das perseguições iniciadas na Armênia pelo imperador Diocleciano. Refugiou-se em uma caverna onde, dizem, costumava tratar dos animais selvagens que, feridos ou doentes, ali o procuravam. Depois de sua morte, diversos milagres passaram a ser atribuídos a ele. Tornou-se tão popular que, na Itália, 35 igrejas foram erigidas em sua homenagem. E, finalizando, não se pode deixar de considerar que, devido à sempre surpreendente maldade humana, o patíbulo foi o palco em que a santa protetora dos olhos teve os seus arrancados e o santo protetor da garganta teve a sua cortada.