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Divagações sobre os desencontrados critérios de seleção nas diversas raças caninas, incluindo o Fila Brasileiro, e sobre o heroísmo dos cães

por Américo Cardoso dos Santos Júnior

Os motivos que levaram à criação do CAFIB – Clube de Aprimoramento do Fila Brasileiro (antes a CAFIB – Comissão de Aprimoramento do Fila Brasileiro) são bem conhecidos. Muito já se escreveu sobre a utilização encoberta (e depois, já nem tão encoberta assim) de reprodutores principalmente das raças exóticas Mastiff Inglês, Mastim Napolitano e Dogue Alemão (preto) em cruzamentos com matrizes da nossa raça nacional, o Fila Brasileiro; e, para completar o caos, a comunicação de genealogias mentirosas, levando à emissão de pedigrees falsificados atestando a pureza dos filhotes resultantes dessa salada genética, sob a vista grossa do então BKC – Brasil Kennel Club, hoje CBKC – Confederação Brasileira de Cinofilia.

E o motivo que me leva a redigir estas linhas é a triste constatação que os cruzamentos “por baixo do pano” e a falsificação de pedigrees na cinofilia dita oficial deste nosso país não se restringem apenas ao Fila Brasileiro.

Meu filho mais velho, Américo Cardoso dos Santos Neto, hoje Diretor de Informática do CAFIB, é web designer com mestrado na histórica Universidad de Valladolid, fundada no século XIII nessa importante cidade, que já foi capital da Espanha e hoje é capital da comunidade autônoma de Castela e Leão (resultante da moderna união entre os tradicionais reinos de Castilla e León). No início dos anos 1980, quando ele ainda era criança, pediu-nos, a mim e a Cleide, um cachorrinho pertencente a uma raça de pequeno porte, que pudesse ficar no seu colo e com o qual pudesse ter um contato mais intenso do que o mantido com os Filas. A saudosa lembrança de um Pinscher Miniatura chamado Gigante, que, na minha infância, tínhamos em casa, definiu a escolha da raça. Depois de algumas pesquisas, fomos ao Canil Flor dos Manacás, onde adquirimos um filhote macho de pelagem chocolate. Como os pedigrees ainda não tinham sido emitidos, o criador permitiu que o menino, futuro proprietário, escolhesse o nome do seu cão. E foi assim que, em nossa casa, chegou Cruel da Flor dos Manacás, o primeiro de uma futura numerosa série que, desde então, temos mantido de exemplares desses cachorrinhos, chamados na Alemanha, seu país de origem, de Zwergpinschers (ou Pinschers anões) e conhecidos nos Estados Unidos como Min Pins (abreviatura de Miniature Pinschers). Nosso pequeno Cruel, alguns anos depois, teve uma morte trágica. Por um descuido de quem abria o portão, ele rapidamente escapou, atravessou a rua e lançou-se furiosamente pelos vãos da cerca da chácara situada em frente à nossa e, com muito ímpeto, atacou um canzarrão, que ali vivia. Cruel morreu na primeira mordida. Depois dele, tivemos muitos outros, como She-Ra, Bicharoco, Chun-Li, Lyon, Baby, Tieta, Vodka, Ypióca, Havana e tantos mais, nascidos em nossa casa ou adquiridos de terceiros.

Vale lembrar que o Pinscher Miniatura aqui no Brasil costuma ser chamado apenas de Pinscher, nome que, na verdade, é o da principal raça da qual ele descende e que, da mesma forma, pelo menos um século depois (nos anos 1890), também foi a base para a formação do então chamado Dobermann Pinscher. Esse ancestral do Pinscher Miniatura e do Dobermann é um cão de tamanho mediano e, por isso, costuma ser chamado de Pinscher Médio, ou Pinscher Standard, mas também é conhecido como Pinscher Alemão, ou Deutscher Pinscher. Atualmente sua criação se restringe a pouquíssimos canis, em apenas alguns países, como os Estados Unidos, onde se chamam German Pinschers. Lá, tive a oportunidade de ver alguns exemplares nos anos 1980, quando julguei diversas exposições de Fila Brasileiro promovidas pelo CAFIB-U.S.A. É que o Pinscher Alemão, assim como o Fila (e pelo menos outras 80 raças), não fazem parte da relação oficial reconhecida pelo AKC – American Kennel Club e, portanto, só podem participar das mostras promovidas pelos Clubes de Raças Raras (Rare Breed Clubs). Como curiosidade, fazem parte desse elenco de raridades – ao lado das raças de quem, de fato, ninguém ouviu falar, como o Nova Scotia Duck Tolling Retriever, o Peruvian Inca Orchid e o Polski Owczarek Nizinny – algumas bastante conhecidas, como o Mastim Napolitano, o Dogo Argentino, o Dogue de Bordeaux e o Border Collie.

Oficialmente, o Pinscher Miniatura segue o padrão nº 185 da FCI – Fédération Cynologique Internationale, datado de 18.04.2007, que estipula, para machos e fêmeas, a altura na cernelha de 25 a 30 cm e o peso de 4 a 6 kg. Mesmo assim, apesar dessa especificação tão clara, as revistas cinófilas e os sites especializados, aqui no Brasil, são fartos em anúncios que oferecem Pinschers números 00, 0, 1, 2 e 3. Não causará surpresa se, logo começarem a surgir os tamanhos abaixo de zero e as publicações passarem a oferecer filhotes de nº -1, -2 etc. Da mesma forma, nos Estados Unidos, cuja cinofilia independente é regida pelo AKC – American Kennel Club, e, portanto, não segue os padrões e normas da FCI, o Miniature Pinscher também dispõe de uma variedade ainda menor, lá chamada de “Teacup Min Pin”, nome que indica a possibilidade de esses cãezinhos caberem dentro de uma xícara de chá.

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Teacup Min Pin, uma linhagem selecionada para ser cada vez menor

Voltando aos nossos Pinschers Miniatura, e ao descaso dos órgãos considerados responsáveis pela preservação e pelo melhoramento genético das raças caninas de acordo com seus padrões oficiais, recentemente perdemos duas cadelinhas, já bastante velhas. No intuito de substituí-las, encarregamos nossa filha Mariana, que é veterinária e apaixonada por cães, dessa incumbência, sem imaginar a dificuldade que ela enfrentaria para cumpri-la. É que, além das subdivisões extraoficiais em diferentes números e tamanhos, as fotografias dos anúncios mostravam cães de todas as cores e texturas de pelagens, permitidas ou não pelo padrão, além de cabeças globulosas e grandes olhos saltados. É claro que esses “pinschers”, ainda que portadores de pedigrees atestando sua pureza rácica, eram, na verdade, mestiços (em diferentes graus de sangue) de Chihuahuas. Mariana finalmente conseguiu encontrar as duas filhotinhas que queríamos em uma cidade da região da Floresta Equatorial Amazônica, chamada Rolim de Moura, em Rondônia, onde um veterinário vem criando, com esmero, o verdadeiro Pinscher Miniatura. Cumprindo uma exaustiva maratona, elas acabaram por chegar a nossa casa, alegres e bem dispostas, depois de enfrentar galhardamente a viagem de automóvel, ao longo de alguns milhares de quilômetros, em que o motorista, durante uma semana, foi entregando os diversos filhotes da ninhada a diferentes compradores.

É notória a mania de alterações que a cinofilia dos Estados Unidos costuma promover no padrão original das diversas raças. Naquele país, as exposições caninas se tornaram espetáculos que nada têm a ver com o objetivo inicial desses eventos, que era o de selecionar os exemplares mais funcionais. Lá foi instituída a figura do “handler” profissional, que, apesar de ter surgido como coadjuvante, vem se esforçando para se tornar o astro das pistas, com seus trejeitos histriônicos e poses teatrais. E, tanto ele como o juiz, se paramentam cuidadosamente para suas atuações, com seus paletós e gravatas de padrões coloridos e espalhafatosos, fazendo desconcertante contraste com os pés calçados de tênis.

Recentemente, um velho amigo de infância – com perdão da redundância, pois, se é meu amigo de infância, só pode ser velho – nos pediu que procurássemos e escolhêssemos para ele um filhote de Boxer. Mais uma vez, a missão foi repassada a Mariana e foi então que me inteirei que a antiga divisão havida na raça fora oficializada, pois alguns anúncios ofereciam ninhadas do Boxer Americano, enquanto outros se referiam ao Boxer Europeu. Na Internet, existem sites que explicam bem, e ilustram com fotografias, as marcantes diferenças entre esses dois tipos. É claro que o dos Estados Unidos é bem mais refinado e esguio e, além disso, sua seleção dá grande importância à disposição das marcações brancas. Já o da Europa, com cabeça mais pesada e com pescoço e tronco mais robustos, é mais funcional como cão de guarda e se mantém fiel ao padrão original alemão.

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Dois machos adultos mostrando a diferença entre o refinamento do Boxer norte-americano (à esquerda) e a robustez do tipo original alemão (à direita)

O São Bernardo também foi vítima das ações cometidas pela cinofilia festiva e os exemplares hoje premiados nas pistas de exposições diferem de seus heroicos ancestrais. Essa raça começou a ser criada no século XVII pelos monges do antiquíssimo Hospice du Grand-Saint-Bernard. Sua função inicial foi a de guarda e proteção desse mosteiro, tradicional abrigo dos viajantes que cruzavam os Alpes entre a Itália e a Suíça, mas logo os monges notaram a grande aptidão natural desses cães para encontrar pessoas perdidas nas montanhas ou soterradas pela neve. E, então, sua função principal passou a ser a realização desses resgates, em que milhares de vidas de viajantes foram salvas graças ao olfato apurado e o instinto de busca do cão de São Bernardo. O mais famoso deles foi Barry, que viveu no início do século XIX e a quem se atribui grande número de vidas salvas. O número exato é variável segundo as diferentes versões da história que, muitas vezes, ao longo do tempo, vai se tornando fantasiosa. Muitos relatos contam, que ele teria salvo 40 pessoas e acabou sendo morto pela quadragésima primeira que, pensando estar sendo vítima do ataque de um urso, o teria apunhalado. Outros dizem que ele morreu de velhice no mosteiro. Seu corpo foi embalsamado e exposto no Museu de História Natural de Berna. Outra lenda tradicional, mas inverídica, sobre a raça é a que atribui o uso de um pequeno barril de conhaque preso à coleira para reanimar e aquecer as vítimas que encontrava. Na verdade, eles são cães de salvamento, e não barmen (ou bardogs!?). Também é preciso registrar que o São Bernardo original, embora apresente pelagem densa e dupla, com subpelo abundante, na verdade, tem pelo curto. A variedade de pelo longo, que vemos nas exposições, não poderia ser utilizada para esse trabalho de encontrar pessoas perdidas nas montanhas, ou soterradas por avalanches, porque a pelagem mais comprida favorece o acúmulo de gelo, neve e umidade.

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Monumento em homenagem ao São Bernardo Barry, que teria salvo a vida de 40 pessoas e acabou sendo morto pela 41ª

E, por falar em nobreza e heroísmo caninos, e em cães heróis empalhados, não podemos deixar de lembrar a história de um brasileiro, que muitos afirmam ter sido um Fila, mas que, na verdade, era um cachorro sem raça definida, de porte médio para grande, pelagem curta e de coloração amarelada, de nome Brutus. Seu corpo taxidermizado está exposto no Museu da Polícia Militar do Rio de Janeiro porque ele foi considerado um bravo combatente na Guerra do Paraguai. Mascote do 31º Corpo de Voluntários da Pátria, vivia, vindo não se sabe de onde, no então Quartel dos Barbonos, atual Quartel General da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro. Diz a história que, quando os soldados, sargentos e oficiais se apresentaram para integrar o Corpo de Voluntários da Pátria, Brutus se apresentou junto e marchou com os militares até o navio que os levou ao campo de batalha. Lá, teria atuado em missões de resgate de soldados feridos e, dizem, ele próprio também recebeu ferimentos em combate, tendo voltado para o Brasil como herói de guerra. Ainda como curiosidade, a atestar a inventividade brasileira, há livros que publicam fotografias de pequenos vira-latas, pretos e malhados, ao lado dos cangaceiros Lampião e Corisco, afirmando que eram “filas” e fizeram parte da nossa história.

No tema das mudanças nos padrões das raças caninas e, ainda, sobre a fidelidade dos cães, encerro estas linhas com a raça japonesa Akita Inu. Nesta, as modificações cometidas pelos norte-americanos foram tão intensas que ela acabou precisando ser dividida em duas. A original continuou com a denominação Akita, enquanto a alterada recebeu o nome de Great Japanese Dog, embora tenha passado a ser mais comumente chamada de American Akita. Aliás, a popularização dessa raça, em seu país de origem, decorre principalmente de uma história que merece ser contada. No Japão, em 1924, o filhotinho Chu-ken Hachiko foi adquirido pelo dr. Eisaburo Ueno, professor no departamento de agricultura da Universidade Imperial de Tóquio, que, todos os dias, tomava o trem para se dirigir a seu local de trabalho. Hachiko adquiriu o costume de sempre acompanhá-lo pela manhã até a estação de Shibuya e, após seu dono embarcar, voltar sozinho para casa. À tarde, pontualmente, retornava à plataforma para esperar o regresso do professor e seguir a seu lado no trajeto de volta à residência. Em 1925, quando Hachiko estava prestes a completar dois anos de idade, seu querido dono Ueno sofreu um AVC na Universidade e morreu. Naquela tarde, o cão ficou esperando em vão e permaneceu na estação até alta madrugada. Passou a retornar, no horário de sempre, durante os dias seguintes, ao longo de semanas, meses e anos. Um dos estudantes, que tinha sido aluno de Ueno e, coincidentemente, era um grande entusiasta da raça Akita, outrora bem mais numerosa no Japão, passou a visitar Hachiko com frequência para levar-lhe comida, além de escrever e publicar diversos artigos sobre a comovente lealdade desse cão. Sua história, cada vez mais conhecida, acabou também sendo divulgada, em 1932, pelo Asahi Shinbun, um dos mais importantes jornais daquele país, e foi contada em diversas revistas especializadas. Em 1934, a estação de Shibuya recebeu uma estátua de Hachiko, moldada em bronze pelo famoso escultor Teru Ando, da qual constava a gravação de um poema alusivo à lealdade. Essa estátua foi destruída durante a 2ª Guerra Mundial, mas, anos depois, o próprio filho do artista, Takeshi Ando, moldou outra para substituir a original. Em 1935, aos onze anos de idade, o cão morreu na mesma plataforma onde, ao longo de nove anos e dez meses, fielmente cumprira a vã rotina de esperar que seu falecido dono desembarcasse do trem.

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Hachiko, o Akita que se tornou um dos mais emblemáticos exemplos de fidelidade canina e a estátua em sua homenagem na Estação Ferroviária de Shibuya

Histórias como estas nos levam a refletir sobre o pré-histórico vínculo que uniu humanos e caninos e sobre as distorções nesse relacionamento, acarretadas pela moderna cinofilia festiva, com pobres animais tosquiados e bem penteados, engaiolados e com lacinhos na cabeça. Nunca usufruíram do convívio com um dono, nem dele receberam um carinho, pois as recompensas que lhes dão são títulos de “Best in Show”, medalhas e troféus, CACs e CACIBs, que eles não conseguem valorizar.

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