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O Padrão Visual da Raça Fila Brasileiro e Outras Histórias - Capítulo 2
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texto integral redigido pelos fundadores, diretores e juízes do CAFIB
Airton Campbell
Américo Cardoso dos Santos Júnior
Luiz Antonio Maciel
A EPOPEIA DO COMBATE À MESTIÇAGEM E O RESGATE DA IMAGEM VISUAL DO FILA PURO
Nesta história, escrita em prosa, mas com o espírito poético da luta pela salvação de uma raça ameaçada de extinção pela mestiçagem – um perigo que ainda perdura pela tentativa de reintroduzir, mais uma vez, na criação, animais fora de padrão –, são apresentados e documentados todos os fatos e batalhas ingentes travados nos primeiros anos desse bom combate para denunciar a miscigenação, organizar formas de luta, disputar o direito de criar uma entidade que pudesse defender o Fila Brasileiro puro, difundir conhecimento técnico e elaborar o inédito Padrão Visual da nossa raça, além de um novo e definitivo padrão escrito que não só descrevesse em detalhes um Fila puro mas apontasse as faltas decorrentes da mestiçagem, verdadeiras provas de um crime continuado que quase destruiu, e ainda ameaça, por outras vias, o verdadeiro Fila Brasileiro.
Capítulo 2
Eleições: O apelo à fidelidade do Fila
Em dezembro de 1977, quando o dr. Paulo estava desenvolvendo a ideia de criar um clube para reunir Filas puros, Antonio Carvalho Mendes recebeu uma notícia de que o CPFB – Clube Paulista do Fila Brasileiro convocava uma assembleia para eleição de nova diretoria. Toninho, como também era conhecido, atravessou o corredor que separava O Estado de S. Paulo da redação do Jornal da Tarde, na nova sede da empresa, às margens do Rio Tietê, na região da Freguesia do Ó, e mostrou a Luiz Antonio Maciel a notícia, que viria a ser publicada no pé de sua coluna Cinofilia do dia 5 de janeiro de 1978, sob o título “Assembleia do Clube do Fila”. A notícia abria com a seguinte informação:
“No dia 30 de janeiro, das 12 às 20 horas, na sede nova do Kennel Clube Paulista, na rua Avanhandava, 133, deverá ser realizada a assembleia geral ordinária do Clube Paulista do Fila Brasileiro, para eleição de 10 membros efetivos e 5 suplentes do Conselho Deliberativo. Dentre os eleitos, serão escolhidos o presidente e o vice-presidente da diretoria executiva para o biênio 78/79.” Em seguida, vinham outros detalhes sobre exigências para o registro de candidaturas.
Convocação de eleições do CPFB.
Da conversa entre Carvalho Mendes e Maciel surgiu a ideia de se inscrever uma chapa de candidatos, liderada pelo dr. Paulo Santos Cruz, para concorrer às eleições e tentar resolver, por dentro das instituições existentes (Clube do Fila, Kenel Clube Paulista e Brasil Kennel Club), o problema da mestiçagem da raça, sem necessidade de criar um clube de Filas puros. Na verdade, não havia uma chapa, mas um grupo de pessoas que concorreriam individualmente aos cargos de conselheiros efetivos e suplentes, mas com o mesmo objetivo de combater a mestiçagem e restabelecer a pureza racial do Fila caso assumissem a direção da entidade.
Ao tomar conhecimento da ideia, dr. Paulo imediatamente aderiu à iniciativa de formar uma chapa, tarefa que coube a Luiz Antonio Maciel, que tinha contato com vários criadores e proprietários de cães contrários à mestiçagem, seus conhecidos de exposições do KCP e do CPFB. Pessoalmente, Maciel, embora sócio do CPFB, optou por não integrar a chapa, por não ter tempo para eventualmente se dedicar ao clube. Dr. Paulo fez contato com seu velho conhecido, o criador e juiz Osni de Morais Pinto (Canil Cruzeiro do Sul), que decidiu participar do grupo. E Antonio Carvalho Mendes convidou, em nome da chapa, o biólogo e professor da Universidade de São Paulo Oswaldo Fidalgo.
No dia 19 de janeiro de 1978, a coluna de Cinofilia saiu com o título “O Clube do Fila recebe inscrições”. O texto informava que no dia 13 de janeiro, às 14h10, na sede do KCP, o advogado Paulo Santos Cruz assinara o livro de inscrições como candidato ao Conselho Deliberativo do CPFB, como nono solicitante. Oswaldo Fidalgo já havia assinado e era o sétimo inscrito. Em entrevista a Carvalho Mendes, no subtítulo “Legenda de fidelidade”, na mesma coluna, Paulo Santos Cruz relatava os problemas de mestiçagem na raça e fazia um apelo: “Estamos pedindo a todos os sócios do Clube Paulista do Fila Brasileiro que se juntem a nós, para o êxito da missão, que nos impusemos. Devolvamos ao Fila a fidelidade que ele sempre nos devotou. Não desmereçamos sua afeição. Sejamos como o Fila, tão leais e honestos como ele tem sido conosco”.
Relato da inscrição do Dr. Paulo como candidato nas eleições do CPFB.
Proposta com tempero mineiro
Na mesma coluna, logo abaixo, outro título com uma nova informação, mostrando que os fatos e ideias se sucediam como um turbilhão: “COGEFIBRA, a nova entidade”. O texto afirmava, na abertura: “O advogado Paulo Santos Cruz acaba de elaborar – a convite – um projeto de estatutos do Conselho Geral do Fila Brasileiro.” Embora tivesse mantido em sigilo o autor do convite, na verdade, Antonio Carvalho Mendes havia articulado uma aproximação do dr. Paulo com o coronel Arthur Verlangieri, de Juiz de Fora (MG), então presidente do Clube Mineiro do Fila Brasileiro, também descontente com a mestiçagem na raça, que sugerira a criação do COGEFIBRA, tendo pedido a Santos Cruz o esboço de um estatuto social. Para atender à iniciativa de Verlangieri, a proposta definia duas sedes para a entidade, uma administrativa-jurídica, em São Paulo, e outra, técnica, em Belo Horizonte, que, obviamente, ficaria com Verlangieri.
Esse estatuto, na verdade, foi uma adaptação do texto já preparado por Paulo Santos Cruz para o C.C.C. FIBRAS. Repetindo os termos que já constavam do primeiro documento, o COGEFIBRA definia, entre outras de suas finalidades e metas, “...estudar ou regulamentar todos os aspectos da criação da raça Fila Brasileiro, visando sempre a pureza e o aprimoramento”.
Estatuto do Cogefibra, elaborado a pedido de Verlangieri.
Uma chapa, com manifesto e plataforma
Paralelamente a esses planos de criar uma nova entidade, dr. Paulo e Maciel trabalhavam em conjunto e em caráter de urgência, diante do prazo exíguo até as eleições, para dar conteúdo à chapa que concorreria à direção do Clube Paulista do Fila Brasileiro, com a elaboração de um manifesto e um programa. Dr. Paulo redigiu o primeiro documento, dirigido aos sócios do CPFB, e Luiz Antonio Maciel elaborou a plataforma de trabalho da chapa, amplamente discutida por eles, com 13 itens. Ela era constituída por oito membros, entre os quais, além de Paulo Santos Cruz, dois outros que viriam a integrar futuramente a Comissão de Aprimoramento do Fila Brasileiro, Oswaldo Fidalgo e Roberto Nobuhiko Maruyama.
O original da carta do Dr. Paulo aos sócios do CPFB.
Folheto impresso com carta do Dr. Paulo e relação de candidatos.
Dentre as propostas, constavam: lutar junto ao BKC pela reabertura do RI (Registro Inicial) para incorporar ao plantel existente Filas autênticos e puros ainda raramente, encontráveis no interior; revisar o padrão aprovado pelo Brasil Kennel Club em 1976 no Simpósio de Brasília e que favorecia a inclusão de animais mestiços; criar uma Comissão Técnica de alto nível; elaborar um código de ética dos criadores; definir normas rígidas de verificação de ninhadas; e criar um Departamento de Divulgação e Publicações. Foi um esboço do que viria a ser futuramente a/o CAFIB e o boletim O Fila.
Original datilografado da plataforma da "chapa" ao CPFB.
Panfleto impresso com plataforma contendo 13 propostas.
Houve também pelo menos uma reunião de alguns membros da chapa, que, a princípio, se chamaria “Defesa da Raça”, mas que se transformou em “Amigos do Fila Brasileiro”, com uma pauta contendo cinco itens:
1) Leitura de material e avisos (incluindo uma carta de apoio à chapa por parte de Francisco Peltier, que estava morando na Inglaterra, a trabalho, e um relato do dr. Paulo sobre a criação do COGEFIBRA);
2) Eleições (com providências como levantamento dos sócios do CPFB, distribuição de tarefas, impressão dos folhetos, arrecadação de verba para produção do material, como agir no dia das inscrições e no dia das eleições e divulgação da chapa);
3) Exposições do ano (como agir, apresentação de recursos contra falhas nas exposições e julgamentos);
4) o que fazer em caso de vitória;
5) o que fazer em caso de derrota (criação de uma associação para a preservação da raça e realização de cursos, entre outros).
Pauta preparatória de reunião da "chapa" Defesa da Raça.
A máquina venceu
O Clube Paulista do Fila Brasileiro, como já era esperado, usou toda sua máquina administrativa e do KCP, para convocar seus sócios, inclusive dois vindos do Rio de Janeiro, e derrotar por larga margem de votos o grupo que combatia a mestiçagem e punha em risco muitos interesses pessoais, comerciais e de poder dentro da cinofilia paulista. No dia da eleição, cada eleitor podia votar em quantos nomes quisesse, até no máximo 15, de uma lista com 28 candidatos inscritos.
Cédula de eleição, com 28 inscritos.
Apurados os votos, foram declarados eleitos para o Conselho Deliberativo 10 membros efetivos e cinco suplentes, que escolheram a diretoria executiva formada por Armando de Souza Reis (presidente, com 84 votos) e Wagner Bacconi (vice, com 87 votos). O dr. Paulo Santos Cruz teve 16 votos, o que significa que, além dos oito membros de sua chapa, conseguiu mais oito votos de outros eleitores. Nenhum integrante da oposição obteve votos suficientes para se eleger.
O grupo eleito comemorou a vitória e acusou seus adversários de terem levantado a bandeira do combate à mestiçagem apenas com intuitos eleitorais. E, certamente, pensaram que, com a derrota nas urnas, haviam se livrado de adversários incômodos.
A luta continuou
Estavam enganados. No dia 24 de fevereiro de 1978, os membros da chapa de oposição enviaram ofício ao presidente eleito. Além de apontar diversas irregularidades no processo eleitoral, com base nos Estatutos do Clube Paulista do Fila Brasileiro, suficientes para anular o pleito, os signatários do ofício afirmaram: “Nosso objetivo não foi simplesmente eleitoral, pois o que nos interessa é a defesa da raça e que o CPFB cumpra a sua função primordial e estatutária de lutar pelo aperfeiçoamento da criação e seleção de animais da RAÇA FILA BRASILEIRO, mediante a orientação dos criadores no sentido de atingir-se o “PROTÓTIPO IDEAL” dessa raça”.
Ofício enviado ao presidente da diretoria eleita do CPFB.
O ofício cobrava ainda da nova diretoria definições e medidas listadas em oito itens, que deveriam ser esclarecidas no prazo de três meses, sobre a questão da mestiçagem, reabertura do Registro Inicial, verificação de ninhadas, o que fazer com os animais mestiços e revisão do padrão da raça de 1976, entre outros. Ainda mais porque, em seu discurso de posse, o presidente eleito havia dito que se “empenharia em defesa da raça”.
Cópias do documento foram enviadas também aos presidentes do BKC – Brasil Kennel Club, do KCP – Kenel Clube Paulista e do Conselho Federal de Cinofilia, assim como ao diretor do Departamento Nacional de Promoção Animal do Ministério da Agricultura, área do governo federal responsável pela criação de animais, inclusive cães.
A mesa-redonda que criou a CAFIB
O jornalista Antonio Carvalho Mendes, que acompanhara as denúncias de mestiçagem, as duas propostas de criação de clubes só de Filas puros (CCC Fibras e COGEFIBRAS) e as eleições de 30 de janeiro, diante da demora do CPFB e dos demais órgãos, estaduais e nacional, da cinofilia brasileira em solucionar a questão da miscigenação de raças no Fila Brasileiro, decidiu convocar uma mesa-redonda para tentar resolver definitivamente o problema.
Antonio Carvalho Mendes e Luiz Antonio Maciel prepararam um roteiro para a mesa-redonda, com a definição de seus objetivos (esclarecer os casos de mestiçagem; discutir a adoção de medidas para acabar com a mestiçagem; solucionar a situação dos mestiços existentes; e a reabertura do RI (Registro Inicial) para a raça Fila) e um esboço de como se desenvolveria o debate, com participação de todos os convidados.
O esboço de um roteiro para a mesa-redonda.
O encontro foi realizado no dia 19 de março de 1978, em uma sala de reuniões do jornal O Estado de S. Paulo, no 6º andar do prédio, na esquina da Marginal do Rio Tietê com a Av. Engenheiro Caetano Álvares, 55, sob a coordenação do jornalista Antonio Carvalho Mendes e tendo como secretários uma funcionária do jornal e o jornalista Luiz Antonio Maciel. Participaram da reunião, o coronel Ayrton Schaeffer (presidente do BKC), Osni de Morais Pinto, Paulo Santos Cruz, Roberto Nobuhiko Maruyama, Rubens Gisondi, Oswaldo Fidalgo, Armando de Souza Reis, Vera Lúcia Costa (criadora de Beagles), coronel Arthur José Walter Verlangieri, Achileu Nogueira Filho (Canil Kirongozi), José Alberto Tinoco (criador de Fila), Celso Piedemonte de Lima (juiz e criador de Fila), Reynaldo Alves de Pinho e João Orlando Jardino (assessores do presidente do CPFB).
Essa histórica reunião foi relatada resumidamente pelo jornalista Carvalho Mendes em sua coluna de 23 de março de 1978, sob o título “Fila Brasileiro, tema de debate”. Relata o colunista de Cinofilia: “Na oportunidade, foi aprovada, por maioria (8 a 3), a proposta do coronel Arthur José Walter Verlangieri – atualmente servindo na IV Divisão do Exército, em Belo Horizonte, e presidente do Clube Mineiro de Criadores de Fila Brasileiro – no sentido de ser constituída uma comissão de âmbito nacional que ficará responsável pelo desenvolvimento da raça Fila Brasileiro, proporcionando orientação técnica e genética aos clubes existentes e criadores em geral”. Na ocasião, votaram a favor da criação da comissão: Santos Cruz, Maciel, Osni, Maruyama, Fidalgo, Vera Costa, Verlangieri e Tinoco.
Foto da mesa-redonda com resumo da reunião.
A proposta da comissão e seus objetivos
Verlangieri foi para a reunião já com uma proposta pessoal definida de criação de uma comissão – uma fórmula comumente adotada em administrações públicas, civis e militares, e em partidos políticos para resolver problemas e pendências e fazer propostas com base em consensos, como pode ser observado na vida pública brasileira, em que proliferam comissões de vários tipos e alcances. O dr. Paulo e seu grupo pretendiam que os órgãos oficiais da cinofilia reconhecessem a existência da mestiçagem e adotassem várias medidas para coibi-la e permitissem a reabertura do Registro Inicial para injetar sangue novo, não mestiço, na raça, bem como definissem o que seria feito com os cães mestiços registrados já existentes. A proposta inicial era criar, a partir desses animais, uma raça que se denominaria Mastim Brasileiro. Diante da resistência dos representantes do BKC, KCP e CPFB a essas propostas, a solução foi aprovar, como era e é praxe no Brasil, a criação de uma comissão e, a partir daí, encontrar soluções.
Junto com essa proposta da comissão, o coronel Verlangieri introduziu dez “objetivos primordiais de atuação”, que faziam parte originalmente do Estatuto do COGEFIBRA (posteriormente publicados em O Fila, número 1, Ano I, de dezembro de 1978, página 2) e foram apresentadas já na primeira reunião da Comissão, realizada no dia 2 de abril de 1978 na residência de Oswaldo Fidalgo, no bairro do Ibirapuera, em São Paulo. Na época, Verlangieri pretendia, entre outras proposições, “regular o adestramento e as exposições de adestramento do Fila Brasileiro”, sem que tivesse explicitado como pretendia fazer isso. Posteriormente essas propostas foram deixadas de lado pela comissão (primeiro como Comissão – e depois como Clube de Aprimoramento do Fila Brasileiro), que condenou o adestramento do Fila para provas de ataque e avaliação da reação a estampido (tiro), porque mascarava o verdadeiro temperamento e sistema nervoso dos animais, prejudicando o julgamento do juiz.
No quinto parágrafo, os dez "objetivos primordiais de atuação".
O presidente do BKC, coronel Ayrton Schaeffer, que não ficou até o final da mesa-redonda e, portanto, não votou a respeito da criação da comissão, ao se despedir declarou: “Prometo acolher qualquer decisão que seja tomada nesta reunião, levando-a para o BKC para que a entidade mater de cinofilia nacional tome conhecimento das decisões e adote as providências necessárias. Sou favorável à adoção de medidas que visem à solução dos problemas da raça no curto prazo, para que ela não seja ainda mais prejudicada”.
Reportagem sobre a primeira reunião da Comissão em 02/04/1978.
A CAFIB começa a trabalhar
Essa comissão, que adotou o nome de Comissão de Aprimoramento do Fila Brasileiro – CAFIB em sua segunda reunião, realizada em 7 de maio de 1978, foi constituída inicialmente pelos seguintes membros, escolhidos na mesa-redonda: Oswaldo Fidalgo, Luiz Antonio Maciel, Osni de Morais Pinto, Armando de Souza Reis, Celso Piedemonte de Lima e Achileu Nogueira Filho, com dois representantes fora da capital paulista: Paulo Santos Cruz (em Santos, SP) e coronel Arthur Verlangieri (em Belo Horizonte, MG).
Nome CAFIB foi adotado na segunda reunião da Comissão em 07/05/1978.
Na primeira reunião da CAFIB, Luiz Antonio Maciel foi escolhido como secretário, encarregado de convocar as sessões, elaborar a pauta e dirigir os trabalhos. Ao contrário do que informam pelas redes sociais algumas pessoas mal-informadas, ou mal-intencionadas, não havia presidente, e todos os demais membros eram integrantes comuns, sem qualquer distinção de hierarquia. O dr. Paulo era membro e representante em Santos, e o coronel Verlangieri, membro e representante em Belo Horizonte.
Dr. Paulo anotou em uma folha os membros da Comissão.
Com o tempo e o suceder das reuniões, por discordâncias com as orientações adotadas pela comissão contra a mestiçagem, os representantes do Clube Paulista do Fila Brasileiro Armando de Souza Reis e Celso Piedemonte de Lima (além de João Orlando Jardino, que havia substituído Achileu Nogueira Filho na comissão) deixaram de comparecer às reuniões. Posteriormente, o coronel Verlangieri também se afastou, apesar da insistência dos demais membros do grupo para que permanecesse. Inicialmente, concordou em continuar, mas depois deixou de comparecer às reuniões e abandonou a CAFIB. Ele ficara muito contrariado porque não havia gostado do fato de que representantes da comissão haviam constatado, em uma exposição do Clube Mineiro, a presença de um número razoável de mestiços, e porque havia sido admoestado por ter divulgado, em nome da CAFIB, mas sem sua autorização, um manifesto sobre a raça Fila.
O curso no Itamaraty forja novos defensores do Fila
Na mesma coluna (de 23/3/1978) em que noticiou a realização da mesa-redonda, Carvalho Mendes publicou uma nota, sob o título “Curso”, em que anunciava: “O Centro Cultural Itamarati promoverá, a partir do dia 29 próximo (uma aula por semana) até o dia 31 de maio (quartas-feiras), um curso sobre o Fila Brasileiro, ministrado pelo advogado Paulo Santos Cruz. O curso abrangerá desde a origem até a escolha de reprodutor da raça Fila Brasileiro. As aulas, das 20 e 30 às 22 e 30, terão lugar na rua João Moura, 307, Pinheiros, onde deverão ser feitas as inscrições”. Anteriormente, o jornalista já havia publicado outras notas sobre o curso. Sua divulgação também fora feita pelo Centro Cultural em pequenos anúncios nas seções de classificados de jornais da cidade. Dr. Paulo, portanto, durante cerca de dois meses, viria, semanalmente, de sua residência, em Santos, a cerca de 70 km da capital, para ensinar sobre a origem, a história, a morfologia e o temperamento da raça, além de curiosidades e fatos interessantes, sobre o Fila e sobre cinofilia em geral – que ele vivenciara, ou soubera, ao longo de sua vasta e intensa experiência –, ocorridos nas exposições, em canis urbanos e nas zonas rurais de tantas regiões brasileiras.
Participaram 25 alunos, entusiastas do cão Fila Brasileiro e interessados em aprender mais com o “Pai da Raça”. Constituíam um grupo animado, mas bastante heterogêneo que, com exceção do casal Roberto e Marília Maruyama, era formado por pessoas que ainda não se conheciam. Entre os alunos, também estavam Airton Campbell, Américo Cardoso dos Santos Júnior e Marilda Mallet. Assim, todas as quartas-feiras, dr. Paulo passou a tomar o ônibus de Santos para São Paulo, onde desembarcava no Terminal Rodoviário do Jabaquara e, ali, embarcava no metrô até a Estação Paraíso, no inicio da Avenida Paulista para, em seguida, ir, de táxi, ao bairro de Pinheiros. Naquela época não havia a Linha Verde, que mais tarde (a partir de 1991) percorreria a Av. Paulista, nem a Linha Amarela, que atualmente liga a Estação São Paulo/Morumbi à Estação da Luz; só existia a Linha Azul – do Jabaquara a Santana, depois ampliada até o Tucuruvi.
Muitos foram atraídos às aulas pelo fato de que, no final dos anos 1970, assistia-se ao auge da mestiçagem e da falsificação de pedigrees, o que colocava em sério risco a sobrevivência da raça. E muitos proprietários e simpatizantes da raça Fila estavam interessados em saber o que se passava dentro dos canis e nas pistas de exposições.A escandalosa heterogeneidade dos exemplares, inscritos e apresentados como Filas Brasileiros, estarrecia os juízes estrangeiros convidados a julgar as mostras promovidas pelo BKC. Essa situação bizarra já começava a levar os dirigentes da cinofilia nacional a temer que a FCI (Federação Cinológica Internacional) chegasse a cancelar o reconhecimento do Fila Brasileiro como raça. Foi por isso e pela pressão de muitos proprietários e criadores de Fila Brasileiro contrários à mestiçagem que o presidente do BKC, coronel Ayrton Schaeffer, na tentativa de disciplinar o caos, não teve outra saída senão aprovar a criação da comissão que viria a se tornar a/o CAFIB na histórica mesa-redonda do Estadão, relatada anteriormente. Esse tema também interessava aos alunos do curso.
Ao término dos dois meses de aulas, o entusiasmo e o envolvimento dos aprendizes com o mestre haviam se tornado tão intensos que a diretoria do Centro Cultural Itamaraty teve de aceitar nossos pedidos de prorrogação do fim do curso, estendendo-o por mais quatro aulas semanais. Depois desse mês adicional, não foi mais possível postergar outra vez o encerramento, pois o Itamaraty já tinha nova programação agendada para aquela sala.
É importante salientar que, naquele já distante ano de 1978, Paulo Santos Cruz tinha 63 anos de idade e, ao longo de 12 anos, até 1990, quando faleceu, aos 75 anos, manteve a iniciativa e a disposição para vir de Santos a São Paulo todas as semanas para as reuniões do CAFIB, onde chegava, sempre, muito disposto e bem humorado. Ele só não vinha quando esses encontros eram realizados na sua própria residência, onde, então, passamos a conhecer sua encantadora senhora, dona Antonieta. Ela era dotada de notável talento culinário e sempre nos oferecia lautos e inesquecíveis jantares, principalmente nas ocasiões dos aniversários, dele e dela, aos quais não falhávamos e éramos invariavelmente recebidos com muita atenção e carinho. Vale destacar que eles eram espíritas e, por razões religiosas, vegetarianos; com isso, para nossa surpresa, conseguiram demonstrar a todos nós, irredutíveis carnívoros, ser possível preparar variadas e deliciosas refeições sem o uso de carne vermelha. Naquela época, além das reuniões semanais, também costumávamos viajar, pelo menos uma vez por mês, para promover Análises de Fenótipo e Temperamento, muitas vezes seguidas de Exposições, em diversas cidades, principalmente de São Paulo, mas também de Minas Gerais, Rio de Janeiro, Bahia, em automóvel, ônibus ou avião. Entre as inúmeras lembranças daquelas maratonas, nos vem à memória a de uma vez em que, ao parar para abastecer e almoçar em um posto de beira de estrada, o "Pai da Raça", que era médium, ao observar o prazer com que a Cleide devorava uma picanha mal passada, comentou, com certa ironia, que estava vendo um boi morto a babar sobre a cabeça dela.
Em decorrência desse intenso convívio, os laços afetivos entre os fundadores do CAFIB e o casal Santos Cruz foram se estreitando muito. E, como, além de não terem tido filhos, eles praticamente não mantinham contato com seus familiares, nós, fundadores do CAFIB, acabamos por ser "adotados" como parentes muito próximos, o que muito nos honrou.
Posteriormente, quando se tornou Clube, o CAFIB realizou mais um curso, também ministrado por Paulo Santos Cruz, a partir de outubro de 1979, na sede regional da ABI – Associação Brasileira de Imprensa, na Rua Augusta.