o pai da raça fila brasileiro

O PAI DA RAÇA

Dona Antonieta - 32 anos criando filas puros

(Airton Campbell, publicado em "O Fila" nº 29, de abril, maio e junho de 1981)

Nasci e fui criada em fazenda, onde sempre havia muitos cães, sem raça definida. Alguns nossos e outros que apareciam por lá, e por lá ficavam, incorporados ao bando. Recordo-me, particularmente, de um líder de matilha, um vira-lata grande, inteiramente negro. Chamava-se “Alemão”. Sucedido por outro, evidentemente filho dele, também negro, de nome “Sultão”. Ambos me festejavam muito e me acompanhavam sempre, em minhas andanças pela fazenda e, à noite, dormiam sob minha janela.

Assim Dona Antonieta Figueira Brás dos Santos Cruz, esposa do Dr. Paulo Santos Cruz, proprietários do Canil Parnapuan e criadores de Fila Brasileiro desde 1949, iniciou o seu depoimento a “O Fila”.

Fluminense de Itaocara, e juíza das raças dos primeiro, segundo, quinto e sexto grupos (julgou em Campos, Recife, Ilhéus, Rio de Janeiro e São Paulo), e juíza especializada da raça Fila Brasileiro, pelo CAFIB, Dona Antonieta, pequena de estatura, mas guardando uma grande vitalidade e amor pelos animais, durante os últimos 32 anos foi quem cuidou das gerações de Filas Parnapuan, com muito carinho e desvelo, acompanhando de perto o trabalho de seleção desenvolvido pelo Dr. Paulo Santos Cruz, e sua luta pela pureza da raça e por uma cinofilia mais técnica.

Afastada praticamente da criação intensiva por problemas de saúde (sérios problemas de visão) durante cerca de dez anos, voltou a entusiasmar-se com o surgimento do CAFIB, e hoje se alegra com a possibilidade de, novamente, ter ninhadas de sua criação, para as quais guarda receitas e todo um conjunto de cuidados que aprendeu a tomar ao longo de todos os anos de criação.

Essa dedicação de décadas à raça Fila Brasileiro lhe valeu, bem como ao Dr. Paulo Santos Cruz, com justiça, o título de “Pais da Raça”.

Este é, na íntegra, o depoimento de D. Antonieta Santos Cruz para “O Fila”:

Demiti-me do quadro de juízes da Federação Cinológica do Brasil acompanhando o Paulo, pois não quis prosseguir julgando sem ele. Porém continuei auxiliando-o no Santos Kennel Clube, como sempre fiz durante os 18 anos nos quais ele o dirigiu.

Meu interesse técnico pelos cães iniciou-se quando, já casada, ganhamos um Fox Paulistinha, de nome Toy, presente do Dr. Berretini, médico radicado aqui em Santos. Toy alegrou nossa casa durante 14 anos: valente, amigo, arruaceiro. Adorava saltar o muro para ir atracar-se com o Jordão, um enorme mestiço de Pastor Alemão com urso pardo, da casa do outro lado da rua. Vezes sem conta tivemos de ir ajudar a vizinha a separar aquela briga do nosso David com aquele gigante Golias, que sempre levava desvantagem ante a ligeireza e o destemor do Toy.

Quando decidimos criar, adquirimos um casal de Dobermanns: Cristal e Harpa de Chumiere – Fritz e Moleca, para os íntimos. Despreparados, começamos mal, comprando irmãos germanos e, o que foi pior, sem qualquer temperamento. Toy dominou a ambos e, volta e meia, surrava Fritz.

Compreendemos haver errado e que não adiantaria insistir em criar, aumentando o número de Dobermanns inúteis. Presenteamos o casal a pessoa amiga, o Sr. Álvaro Dias, para embelezar seu jardim. E ficamos muito tempo contristados e sofrendo, pois aqueles  dois nos eram muito queridos, e não tinham culpa de resultarem de má seleção. Mas precisávamos de cães de guarda, ou ficaríamos sem nossa coleção de pássaros.

Naquele tempo só podíamos nos aprofundar tecnicamente por meio do estudo direto em livros. As pessoas tidas como versadas não possuíam conhecimentos científicos; repetiam crendices, sem qualquer base técnica. Não havia literatura brasileira especializada. Importamos livros norte-americanos, ingleses, italianos, espanhóis, franceses, alemães. Um editor, espontaneamente, concedeu-nos desconto de 30% porque, pelo volume da compra, “certamente éramos revendedores”. Penetramos um pouco nas técnicas de seleção, de escolha dos cônjuges, de herança genética, etc... Inclusive, conhecendo as várias raças, nos foi possível escolher o Fila Brasileiro para nova tentativa de criação que, felizmente, dessa vez deu certo. A partir dessa segunda tentativa, nossa “cinofilite” agravou-se tremendamente. Chegamos a ter 42 Filas em casa. É bem verdade que havia duas ninhadas, mas os adultos passavam de 20.

Só havia um criador, o Sr. João Ebner, de cujo canil só conhecemos a ninhada da qual saiu Apolo do Rancho Alto, segundo campeão da raça, filho do Campeão Bumbo da Vila Paulista e da Campeã Tita do Rancho Alto, primeiro casal campeão da raça (ambos de Registro Inicial). Tita tinha “cauda de castor”, isto é, curta e com uma só largura, desde a raiz até a extremidade, arredondada. Todos rajados. A segunda campeã da raça já foi nossa Lupe Von Cadiz y Cadiz – este o primeiro nome de nosso canil, só mudado para Parnapuan depois de nascida a primeira ninhada de Filas. Não ficava bem, numa raça brasileira, aquele sobrenome de nobreza européia.

Nosso plantel foi adquirido em fazendas mineiras. Paulo  vasculhava-as, à procura de bons exemplares. Só o acompanhei uma vez, e jurei nunca mais fazê-lo. Vimo-nos com quatro cães de idades diversas, em pleno centro de Belo Horizonte, sem condução, pois os táxis recusavam-se a nos transportar, alegando proibição do departamento de higiene. Não conhecíamos o caminho do hotel e as pessoas das quais procurávamos nos aproximar, para obter informações, afastavam-se às pressas, com medo dos cães. Chegados no hotel, este também não nos queria aceitar, e foi preciso muito jeito, muita conversa, para deixá-los numa edícula de madeira, sem luz, no fundo do terreno. No dia seguinte tomamos o avião e paramos em Varginha, para apanhar mais quatro filhotes que Paulo adquirira em viagem anterior. E vivemos nova odisséia para alimentar, engradar e embarcar toda aquela cachorrada, pois, na época, era proibido embarcar animais vivos em aviões. E tudo se repetiu em São Paulo, no Aeroporto de Congonhas, onde nos vimos com oito cães, num engradado imenso, alvo da curiosidade de todos, suportando olhares mais eloqüentes do que muitos discursos, uns criticando, outros considerando-nos amalucados e muito poucos transmitindo-nos um pouquinho de simpatia. Finalmente um táxi dispôs-se a nos trazer até Santos, mas fazendo-se pagar regiamente.

Desde então passei a admirar o Paulo, que prosseguiu nas suas procuras, sozinho. Imagino quanto terá sofrido.

Quando retornava, Paulo fazia um relato da viagem. Assim aconteceu com a do Príncipe Albrecht Von Bayern. Este importara Dunga de Parnapuan, o primeiro cão brasileiro a ser exportado. Entusiasmou-se tanto que tomou um avião e veio buscar fêmeas. Só tínhamos duas, que havíamos guardado para nós: Garoa de Parnapuan e Hera de Parnapuan. Mas o príncipe queria mais. Assim, lá foi ele, com Paulo, de automóvel, pelas fazendas do Triângulo Mineiro. Era estação chuvosa, tiveram encalhes, derrapagens incríveis. De Maria da Fé até Cristina, chegaram a descer um morro pela encosta, pelo pasto, que apresentava melhores condições do que a estrada. Num certo trecho enladeirado, o automóvel dançava e voltava para trás; o príncipe saltou e, com ramos que arrancava do barranco, procurava calçar as rodas, na esperança de dar apoio a elas. Quando finalmente chegaram a Cristina, o piso do carro havia desaparecido sob os pés deles. Na mala do carro, também, um trecho do piso sumira e as malas só não caíram porque, pelo buraco, o barro entrou mais depressa, segurando-as. Estavam, ambos, enlameadíssimos, mas tinham muito espírito esportivo porque, ao ver o príncipe naquele estado, Paulo teve um ataque de riso, pois afinal ali estava Sua Alteza Imperial, o Príncipe Albert Von Bayern, herdeiro presuntivo da coroa da Alemanha e Prússia, com lama mineira até dentro do bolso do colete, com o bigode vermelho de barro, e com uma grande admiração, que se transformou em respeito, por um povo que tinha tais estradas...e ainda achava graça.

Certa vez Paulo foi julgar em Moji das Cruzes. Lá ganhou um filhotinho de Chihuahua do criador carioca, Rogério Bittencourt, do Canil Bitta’s. O cãozinho chamava-se Bitta’s Tarzan King of Santos. Como era muito nome para tão pouco bichinho, o apelidamos de “Pedrito”. Extremamente atrevido, nervoso, escandaloso, principalmente quando no meu colo, aí então atacava até os Filas. Mas era realmente valente. Nos treinamentos, no campo do Santos Kennel Clube, Pedrito não só atacava o figurante, mas mordia a manga, ficando pendurado como qualquer cão valente do terceiro grupo. Resolvemos adquirir uma companheira para Pedrito. Veio então sua noiva, Bitta’s Paquita y Paquita, porém ficou tão miudinha que não tivemos coragem de cruzá-la. Seguiram-se outras. Resultado: em pouco tempo chegamos a 23 Chihuahuas.

Criamos muitos Filas. Seguíamos a ordem alfabética e percorremos três vezes o abecedário. Só com Filas. Portanto 72 ninhadas, pois não usávamos a letra “T”, reservada à denominação dos cães conseguidos nas fazendas. A única exceção foi Lupe, por ter sido adquirida antes de nos organizarmos.

Entre esses, muitos deixaram saudades, pela inteligência, dedicação, valentia, espírito de guarda: Lupe, Aymoré, Tauá, Fera, Tamoyo, Ogum, Babá, Chita, Henequem (Quem-Quem) e muitos outros.

Certo dia Paulo descobriu Bumbo da Vila Paulista, o primeiro campeão da raça. Velho, doente, inteiramente tomado pelo reumatismo, abandonado num sítio perto de São Paulo. Foi buscá-lo. Tratamos dele com extremo desvelo e conseguimos um quase milagre. Quando chegou, mal andava e, para deitar-se, não conseguia dobrar as pernas; simplesmente deixava-se cair de lado. Depois, quando o víamos esperneando, o levantávamos e o ajudávamos a dar os primeiros passos. Ele aceitava a ajuda, porém sempre rosnando, como velho rabugento. Após alguns meses, chegou até a ter explosões de energia, correndo de alegria, como um cão novo. Morreu pouco depois, mas feliz e querendo-nos bem.

Aborrecimentos? Tivemos alguns. Apesar dos muros altos de nossa casa, Quem-Quem arrancou dois narizes e escavou uma testa. Por isso ganhou mais um apelido: Pitanguy.

Na ninhada da segunda letra “C” atingimos o ápice de uma seleção gradativa: cães física e mentalmente excepcionais: Caiçara, Carioca, Candango e Calunga foram, realmente, cães extraordinários.

Quando alcançamos a segunda letra “O”, nasceu outra ninhada fora de série, na qual despontavam Ogum e Orixá. Já então pensando em manter os melhores à mão, não permitindo que adquirentes sem espírito cinófilo os anulassem num fundo de quintal, decidimos ficar com um, e presentear o outro a um criador. Escolhemos o Dr. Ênio Monte, do Canil ABC, então um autêntico criador da raça Fila. Suas preferências foram pelo Orixá, por ser vermelho, ou melhor, castanho-avermelhado. Ficamos com Ogum, rajado. E foi resolução acertada porque, meses depois, a leptospirose levou-nos todo o plantel, anulando tantos anos de seleção. Ficamos com um único exemplar: a velha Lupe, cansada, já rabugenta, mas valente e amiga, a única com anticorpos para tudo que era virose.

O festejado arquiteto, Dr. Gregory Warchavschik, havia adquirido Caiçara, e o fez logo campeão. Ao saber de nossa perda, trouxe-nos duas fêmeas, ambas grávidas do Caiçara. E assim, graças à bondade e cooperação desse saudoso amigo, pudemos recomeçar com Babá de Macunaíma e Biruta de Macunaíma.

Outra vez, viagens às fazendas. Tudo de novo.

Quando atingimos o final da terceira passagem pelo abecedário, Paulo aborreceu-se tanto com a política clubística da cinofilia, que decidiu dar-lhe as costas, o que fez, inclusive pedindo demissão do quadro de árbitros da F.C.B. Acompanhei-o, pois também minha visão estava, então, já bastante prejudicada.

Deixando de criar, a quem nos procurava para filhotes, recomendávamos os canis dos criadores de nosso tempo, o que nos valeu, mais tarde, muitos aborrecimentos, pois não sabíamos que alguns estavam mestiçando.

Finalmente nasceu o CAFIB, e Paulo foi novamente puxado para a cinofilia, ou melhor, para a “filofilia” pelo jornalista especializado Sr. Antônio Carvalho Mendes, de “O Estado de São Paulo”. Resultado: já estamos com quatro Filas em nosso canil. Em breve tornaremos a anunciar a ninhada “A” dos Parnapuans, recomeçando a percorrer o abecedário pela quarta vez.

Entristeceu-nos muito a mestiçagem. Principalmente ao saber, nela envolvidos e praticando-a, alguns dos nossos antigos amigos criadores. Não consegui, até agora, compreender o porquê. Certas pessoas com espírito predatório não podem passar junto de um arbusto sem quebrar um ramo e atirá-lo ao chão. São os mesmos que escrevem nas paredes, riscam as portas dos elevadores, etc... não podem ver algo inteiro sem quebrá-lo; algo lindo sem maculá-lo. A raça Fila surgiu perfeita, num acervo genético que podia ser considerado dádiva divina. Tinham de enodoá-la, vilipendiá-la. E tentaram. Infelizmente, com a omissão cúmplice dos que deviam defendê-la.

Mas o CAFIB aí está, lutando o bom combate. Devemos muito, neste particular, ao jornalista Antônio Carvalho Mendes. Foi o primeiro a levantar a bandeira da pureza rácica do Fila.

- E quanto aos que agridem o CAFIB?

São ainda mais difíceis de entender. O Paulo gosta de reduzir os assuntos ao máximo possível de simplicidade. Diz ele:

“O CAFIB tem como objetivo único a defesa da pureza do Fila. Combatem o CAFIB os contrários a seu objetivo único, ou seja, os que desejam a impureza da raça Fila; ou ainda os que se enxovalham na mestiçagem”.

Logo, devemos ficar ao lado do CAFIB, ou da pureza da raça Fila. O resto são adereços que não contam.

Santo da Casa

(Lydia Fiederich, publicado em “A Tribuna”, de Santos, em 28.12.81, e em “O Fila”, número 32, de Janeiro e Fevereiro de 1982)

O número 394 da velha Rua Oswaldo Cruz é ocupado por uma casa que ninguém vê. Porque há um muro alto e uma cerca de Ficus a encobri-la, entende? Os portões também são fechados. E quem se sentir tentado a espiar pelo vão deixado à altura da campainha, dificilmente o fará. Um aviso sobre cães amedronta qualquer um. E, mais persuasivo ainda que esse aviso, o latido, vindo sabe lá Deus de onde, pertencente a um cão de guarda – que deve ser um monstro de grande – conserva a visita à distância.

Alguns amigos de Paulo e de Antonieta, muitos criadores de cães – de Santos, do Estado, do Brasil – conhecem a casa em questão. Ali já foram ouvir o canto dos sabiás. Para lá enviam correspondência. Mas, mesmo para os moradores da rua e do Boqueirão, o que ali existe; o que dali há décadas se fez e se faz; a importância de seu proprietário no campo da cinofilia, principalmente, são coisas desconhecidas. No entanto, veja:

Há meses, uma revista alemã – “Molosser Magazin”, editada na cidade de Herdecke – publicou um artigo em que o nome de Paulo Santos Cruz, conhecido como o “Pai da Raça Cão de Fila”, através da reprodução de trechos de artigos seus, publicados em “A Tribuna”, e em revistas especializadas brasileiras, era citado nada menos que 35 vezes. Claro que, como informação, Santos e Brasil também participavam da citação. Era o longo trabalho de um criador de cães, a levar para países de alta civilização – e de vastos conhecimentos cinófilos – sua contribuição no campo da genética e da zootecnia. Era o reconhecimento de outras plagas ao valor de um criador de Filas que, para orgulho nosso, é de Santos, sim senhor.

Para confirmar a importância dada a Paulo Santos Cruz, na edição seguinte da “Molosser”- em papel “couchê”, coisa fina como o que – o autor de novos comentários, sempre sobre trabalhos do juiz e criador brasileiro, prometia enviar esses artigos, na íntegra, a quem lhe enviasse três marcos. É sim, amigo. Mais de 150 cruzeiros vale, na Alemanha, a cópia traduzida de alguns artigos do morador da nossa Oswaldo Cruz.

Mas a glória maior ainda estava para chegar. Veio dentro de um envelopão da Cobec – Companhia Brasileira de Entrepostos e Comércio. Encerrava ele a revista “Koirame”, que, depois de muitas sondagens, se soube ser da Finlândia. Até lá, imagine, a criação e as experiências e observações do Dr. Paulo mereciam, através do articulista J.A.U. Yorjola, chegar ao conhecimento dos criadores de cães daquele pedaço da Europa.

Pois é, amigo. Você sabia termos um dos papas da cinofilia mundial entre nós?

Pois temos. Orgulhe-se, como santista, por tal feito. A Santos que o café celebrizou, a Santos que o futebol de Pelé divulgou popularmente em todo o mundo, tem agora, no fechado, mas importante mundo dos criadores de cães, mais um motivo e mais um nome a consagrá-la: ser local em que foi aprimorada a raça dos Filas Brasileiros. Graças a um criador, pesquisador e estudioso do quilate de Paulo Santos Cruz, aquele tranquilo morador da Oswaldo Cruz que, nem mesmo pelos próprios vizinhos, chega a ter seu valor sabido. E reconhecido!

Ao Dr. Paulo Santos Cruz (In Memorian)

(Américo Cardoso dos Santos Jr., outubro de 1990)

Existem criaturas de vida interior tão intensa e carisma tão envolvente, que a força de sua personalidade se faz presente em tudo que as rodeia. Uma pessoa assim cria um mundo em torno de si, para o qual irradia tanta vida, que os objetos que dele fazem parte, contagiados por aquele ânimo forte, perdem a condição de inanimados e passam a refletir, no seu conjunto, a luz daquele caráter que os fez viver.

Havia em Santos uma casa assim, pois a vida que emanava de seu morador criava uma aura peculiar em torno dela. As pessoas que lá iam pela primeira vez, ao adentrarem àquela sala de paredes tão azuis que sempre pareciam recém pintadas, custavam a decidir em que primeiro deter os olhos, tal a profusão de histórias que aquele imenso repositório de lembranças sugeria. O critério que norteava a disposição tão pouco ortodoxa daquela babel de estilos nada tinha a ver com os cânones da decoração. Guiava-se tão somente pelas paixões, tão diversas quanto intensas, que, em diferentes períodos, inflamaram aquela bem vivida existência. Espelhavam-se ali tanto os arrebatamentos da mocidade como as crenças profundas que o estudo das doutrinas espíritas mais tarde lhe trouxera.

A enorme coleção de relógios antigos ocupava grande parte da sala. Havia dezenas deles, de todos os tipos: de parede, carrilhões, ampulhetas, um relógio de sol de bolso cujo engenhoso funcionamento ele gostava de explicar, e mais toda a espécie de maquinária que a inventiva humana foi capaz de conceber desde que começou a sentir necessidade de escravizar-se aos horários. Sobre uma mesa, formada por um grande tronco de lados rugosos e tampo polido, espalhavam-se sabres, punhais, baionetas e toda sorte de armas brancas antigas, orientais, primitivas, exóticas, trazidas de tantas viagens. Aqui e acolá objetos do mar, conchas e caramujos estranhos, dentes de animais marinhos, peixes fossilizados. Lembranças e lauréis das exposições caninas que julgou enchiam prateleiras; estatuetas de cães de diversas raças, moldadas nos mais diferentes materiais, medalhas, taças, flâmulas, troféus, diplomas, placas e cartões de todos os tamanhos e formatos rendiam-lhe homenagens nos mais variados idiomas.

A imensa gama de curiosidades por ali espalhadas, momentaneamente transformava adultos em crianças como quando, sob seu olhar divertido, tentavam descobrir a infinidade de gavetas e compartimentos secretos daquela caixa chinesa de madeira cujo exterior, ornado de intrincados arabescos era, aparentemente, tão hermético como um ovo, pois não apresentava a menor fresta ou ranhura.

Seu entusiasmo pelo espiritismo fazia sempre resvalar a conversa para temas esotéricos, e uma aura mística vestia cada peça da sala quando ele contava histórias como a daquela imagem da santa de mãos postas, quase em tamanho natural, esculpida num tronco de madeira escura, obra de um pequeno garoto caiçara que, embora se chamasse José e fosse totalmente analfabeto, ao fazer a “marquinha” - como ele dizia - com que assinava suas esculturas, sempre ordenava de forma perfeitamente legível, a canivete, as letras: P - A - U - L - O.

Sob a forte impressão que a eloquência de suas palavras sempre causava, o sobrenatural entranhava-se na imaginação dos presentes que passavam, sem querer, a pressupor explicações cabalísticas até para o que havia de mais prosaico. Na expectativa de ouvir mais casos prodigiosos, alguém perguntava o significado daquele jarro de metal já bastante amassado, curiosamente virado de borco sobre o pedestal que encimava o capitel de uma antiga coluna de madeira que, apesar de um tanto fora de prumo, conservava a elegância de seus entalhes barrocos. “Ah! Esse jarro”, ria-se ele, divertido, “como tem o fundo arredondado e a base em que ele se apoia está meio pensa, se for colocado de pé, escorrega e cai”.

A sala tinha dois janelões retangulares, de vidro, que davam para um viveiro enorme. A quantidade e a variedade de aves que ali se via, num caleidoscópio de cores escandalosas, era de estarrecer. Garças, tucanos, mutuns, araras, jaós, faisões e tantas mais criaturas de penas que somente um ornitólogo ou um poeta poderiam enumerar e descrever. A visão que extasiava convidava a querer sair para o jardim, ver mais. Ele conduzia a todos por entre tal número de gaiolas e viveiros, que os visitantes novos - sempre os havia - dispersavam-se e chamavam-se uns aos outros, na ânsia de serem os primeiros a ver e a mostrar um pássaro mais vistoso que o anterior.

Ante as impressões que causavam aqui o galo da serra, ali o melro metálico, os frequentadores habituais da casa simulavam superior indiferença no sorriso complacente com que procuravam atestar sua familiaridade com tal espetáculo. Sobrepondo-se ao ladrar feroz dos Filas nos canis ao fundo, e ao débil latido dos Chihuahuas criados no andar superior da casa, vozes desconhecidas vindas de perto, levavam o curioso a levantar os olhos à procura de quem o interpelara. Deparava então, no meio da galharia, com papagaios diversos, a fitá-lo com aquela expressão profunda que só a idade muito provecta traz.

Estas recordações poderiam se estender por muitas páginas e sempre haveria mais coisas a serem lembradas. Fico a imaginar como deve estar aquela casa agora, vazia, despida de móveis, de livros, de quadros, de objetos, de cães, de pavões, seriemas e pombos de leque, do camundongo Oswaldinho, da tartaruga Aguinacilda. Os olhos da imaginação, ao percorrerem o jardim abandonado e os aposentos desertos, vão ficando fantasiosos. Parecem ver, no imenso viveiro vazio, a figura inexorável do corvo do poema, com seu crocitar monocórdico: “Nunca mais”.

Da pequena placa no portão, que durante décadas avisou: “Cuidado! Cão de Fila Brasileiro”, deve restar apenas uma marca descorada no lugar que ela ocupou, com certeza agora substituída por impessoais faixas de imobiliárias anunciando a venda do imóvel, pois é a isso que foi reduzida a casa: a um mero imóvel...

Quanta vida havia ali! Quanta vida se foi com ele...!

Dr. Paulo (1915-1990)

(José Souto Maior Borges, publicado na circular do CAFIB em 1990)

O Pai da Raça morreu. O Fila Brasileiro está órfão, mas não abandonado. O CAFIB – Clube de Aprimoramento do Fila Brasileiro dará continuidade à obra que o Dr. Paulo Santos Cruz iniciou um dia – como tantos de nós – por necessidade, nos idos da década de 40: a procura de um cão de guarda de qualidades excepcionais. Um cão cujas características principais o Pai da Raça encontrou em suas leituras num diálogo do filósofo grego Sócrates (469 – 399 A.C.), transcrito num dos primeiros artigos escritos pelo Dr. Paulo para o jornal “O Fila” (ano 1, nº 03 – Fevereiro de 1979):

“(...)é necessário que (os guardiães) sejam afáveis para com os seus e perigosos em face do inimigo (...). Não será bom guardião aquele a quem faltar qualquer dessas duas qualidades. Essa combinação pode ser observada nos cães. Deves ter observado que os cães de guarda têm, como tendência inata, a de serem perfeitamente mansos para com as pessoas da família e os seus conhecidos, enquanto com os estranhos sucede o contrário (...). A característica de que falo (...) é a de se enfurecerem ao ver um desconhecido e fazer festa às pessoas que conhecem, ainda que o primeiro nunca lhe tenha feito mal algum e as segundas, nenhum bem. (...) é esse um traço encantador de sua natureza, a mostrar que o cão de guarda é um verdadeiro filósofo.”

Naquela época, o Dr. Paulo precisava de um cão afável com as pessoas da família, mas implacável com os estranhos, para guardar a sua coleção de pássaros. Até que alguém lhe falou da existência de um tal Cão de Fila, com essas características, no interior de Minas Gerais. E o Dr. Paulo saiu em busca do cão dos seus sonhos, por poeirentas ou enlameadas estradas do interior de Minas.

Nesse momento, os dois destinos se cruzaram definitivamente. Já estava escrito nas estrelas... ou, como diria o Dr. Paulo, na sua fase espiritualista, esse era um carma que ele teria de incorporar e carregar por toda a vida... E que um dia ele transferiu para o CAFIB, quando a raça foi desviada por caminhos errados, resultado da mestiçagem. Quase trinta anos depois, o CAFIB voltava a percorrer as estradas do interior do Brasil em busca de Filas puros repetindo, em alguns casos, as históricas viagens pioneiras do Dr. Paulo.

Por isso, o Fila Brasileiro está órfão, mas não abandonado. Além do CAFIB, em algum lugar, em alguma estrela ou no infinito, o Dr. Paulo Santos Cruz – Pai da Raça e eterno Mestre de Criação do CAFIB – continuará velando por ele para que continue sendo um bom guardião na definição do filósofo grego.

O Dr. Paulo Santos Cruz morreu no dia 27 de setembro, em Santos, em sua residência, depois de um longo período de enfermidade que se agravou com a morte de Dna. Antonieta Santos Cruz em 13 de abril. Foi velado na Santa Casa de Santos e sepultado no dia seguinte (dia do aniversário de Dna. Antonieta).

Uma rápida biografia do Dr. Paulo Santos Cruz foi publicada na coluna “Cinofilia”, do jornalista Antônio Carvalho Mendes de “O Estado de São Paulo”, no dia 11 de outubro último, com o seguinte texto:

“Faleceu no dia 27 de setembro, em Santos, o advogado e criador Paulo Santos Cruz. Proprietário do Canil Parnapuan, elaborou o primeiro padrão da raça Fila Brasileiro. Juiz “all rounder”, foi professor dos primeiros cursos de juízes do Brasil Kennel Club, do Santos Kennel Club, do Kennel Club Paulista e da Sociedade Paulista de Cães Pastores Alemães. Fundador e presidente (por 18 anos) do Santos Kennel Club, criava Filas desde 1947. Julgou em diversos estados do Brasil e no exterior. Foi também um dos fundadores do CAFIB – Clube de Aprimoramento do Fila Brasileiro, seu presidente e mestre de criação. Era viúva de Dna. Antonieta Santos Cruz, juíza cinófila recentemente falecida.”

Por mais chocante que essa realidade nos pareça, é natural que ele não a tivesse sobrevivido mais que poucos meses. As suas eram circunstâncias peculiares e inusitadas. Casal sem filhos, sobrava-lhes tempo e ócio com dignidade para dedicar-se aos Filas, que se tornaram a família dos “pais da raça”, título que tanto fizeram por merecer e que tanto dignificaram. Falar de Dr. Paulo é falar de Dna. Antonieta e vice-versa. Dedicaram-se por toda a sua vida à causa do Fila, cada um a seu modo: o dela, mais retraído, voltado para a própria criação, embora com excursões eventuais pelas pistas de julgamento; o dele, mais aguerrido, pugnando em todo espaço que se lhe oferecia pela sobrevivência e pureza da raça. Arrastou nessa luta algumas incompreensões. A seus críticos faltaram, contudo, maturidade e, sobretudo, serenidade. Até a crítica pode – e deve – ser generosa. Não viram que os seus erros, inevitáveis em toda obra humana, foram incomparavelmente menores que os seus acertos. E, sobretudo, não viram que a sua vida foi um acontecimento singular e único. As suas circunstâncias pessoais não devem se repetir na cinofilia brasileira. Como reunir de novo, numa só pessoa, o seu talento e erudição aliados às circunstâncias peculiares que cercaram a sua vida? Poucos sabem que ele era poliglota e ensinou o Fila aos alemães em idioma germânico. Na sua casa, em Santos, tantas vezes freqüentada por mim e seus amigos cafibeanos, viveu como gostava, contemplando as samambaias através da parede de vidro de sua sala e admirando o canto dos sabiás a antecipar a aurora. E, sobretudo, convivendo com os Filas, aprendendo com eles, desvendando-lhes o comportamento em comunhão domiciliar e múltipla com a natureza. O Direito era, para ele, um mero exercício profissional; a dedicação aos Filas, o seu caminho do coração. Hoje, os seus pássaros cantam, nostálgicos, a sua ausência. Os latidos nervosos dos Filas confundem-se com o ritmo dos pêndulos e vozes soturnas de sua coleção de relógios de parede. Suas estatuetas de Filas parecem mais emudecidas ainda. E os Filas, sentindo a sua ausência, embora sem compreendê-la, recusam o alimento que dele e de Dna. Antonieta aceitavam.

Restou de tudo apenas o seu exemplo admirável de fidelidade à raça, o motor que moveu a sua existência toda. Sua vida foi um cântico de amor ao Fila.